A perfeição artística da saga do Padre Brown, por Carlos Nougué


   

   O homem — cujo intelecto é o mais débil de quantos há — não alcança a ciência senão muito arduamente. Não é só que necessite armar-se, antes de tudo, da paciência de aprender a longa arte da Lógica, que rege o ato da razão para que esta alcance a ciência com facilidade, com ordem e sem erro. É também, em primeiro lugar, que as mesmas ciências — as físicas ou naturais, as matemáticas, a metafísica, e ainda a teológica sagrada, que porém depende da Revelação — requerem grande esforço e grande sobriedade do cientista ou filósofo para que ele não se perca na circularidade de seu estudo (efeito daquela debilidade) e não caia na tentação de escapar a essa circularidade saltando etapas. E é ainda, em segundo lugar, que de ordinário o homem não está pronto para alcançar a mesma Lógica se não galga antes, em sua formação global, alguns degraus.

  • Antes de tudo, deve o homem (de preferência já a partir da infância) embeber-se da Poética (Literatura, Música, Pintura, Cinema, etc),[1] cujo fim é conduzir à Retórica (o próximo degrau) fazendo propender ao verdadeiro mediante o belo, e fazendo afastar-se do falso mediante o horrendo.
  • Depois, como dito, deve alcançar a Retórica, cujo fim é conduzir à Dialética ou Tópica fazendo amar o verossímil e odiar o inverossímil mediante certa “suspeita” de verdade.
  • Por fim, como dito também, há de alcançar a Dialética, cujo fim é conduzir à Lógica pela consecução de uma opinião cada vez mais provável ou verossímil.[2]

São as partes potenciais (ou anexas) da mesma Lógica,[3] mas quais constituem em conjunto o discurso provável e inventivo com gradação de menor para maior certeza. A parte porém que nos interessa aqui é a Poética.

O que se possa dizer essencialmente sobre a Poética (ou Artes do Belo) está como em germe na Poética de Aristóteles e esparso por sua obra e pela obra de Santo Tomás de Aquino. Mas não raro de modo demasiado lacunar, o que requer de nós uma amplificação sistematizada, que, feita extensamente alhures,[4] se pode resumir ou esquematizar assim:

  • Nas obras das Artes do Belo, representam-se ações. Em uma destas artes (Literatura, Teatro, Cinema, Música, Dança), no entanto, tal se faz temporalmente, enquanto em outras se faz congelando-as no espaço (Pintura, Escultura).[5]
  • Mas estas ações são desdobramentos daquilo que a obra das Artes do Belo quer simbolizar. É potencialmente infinito o que o artista pode simbolizar por sua obra: a paixão de Cristo (como nas Paixões de Bach), “O vento sopra onde quer” (João 3, 8) (como em Un condamné à mort s’est échappé, filme de Robert Bresson), a sagacidade e a prudência cristãs (os livros do Padre Brown, de Chesterton), o horror do inferno (certas portas de igrejas românicas com suas cenas leteias), a perda da inocência pelas dores da guerra (Vá e veja [Idi i smotri], filme de Elem Klimov), a vitória militar devida à Providência (Henrique V, drame de Shakespeare), a priedade (a Pietà de Michelangelo), etc;
  • Justo para simbolizá-lo é que ocorre à mente do artista a ideia exemplar,[6] o modelo da forma da obra. Com efeito, é mediante essa forma artística que a obra das Artes do Belo simboliza, conquanto o faça muito diferentemente de como as palavras significam nossas concepções mentais: fá-lo, em suma, sendo bela, de modo que, mesmo quando represente o feio ou o horrendo, há de manter o decoro.[7]
  • Por todo o dito, vê-se que as obras das Artes do Belo têm dois objetos: o primeiro é precisamente o que querem simbolizar, enquanto o segundo é o destinatário dessa simbolização, que, no limite, pode reduzir-se ao mesmo artista. Mas uma obra não será poética, de modo algum, se não conseguir simbolizar como devido — ou seja, belamente — para seu destinatário, o que se dará se sua ideia exemplar for falha ou frustrada.[8]
  • Mas, assim como a Gramática tem duplo objeto (o que as palavras significam e o destinatário) e um fim último (permitir que o homem transmita suas concepções e argumentações com ordem, com facilidade e sem erro a outros homens distantes no espaço ou tempo), assim também as Artes do Belo têm seu fim último: como antecipado, fazer propender ao verdadeiro mediante o belo, e fazer afastar-se do falso mediante o horrendo.[9]
  • Sendo assim, se determinada obra poética é tecnicamente conseguida — ou seja, com respeito a seu duplo objeto — mas não alcança o fim último das Artes do Belo, então só poderá dizer-se arte poética secundum quid, só enquanto àquele duplo objeto, mas não simpliciter, não absoluta e perfeitamente; e, como dito, estará para a verdadeira arte poética como o ouropel está para o ouro. Brilhará, mas falsamente.[10]

Pois bem — e não a outra coisa queríamos chegar neste prólogo — a saga do Padre Brown (composta de cinco volumes, um dos quais é o que o leitor tem agora nas mãos) é perfeitamente conseguida tanto quanto ao duplo objeto como quanto ao fim último das Artes do Belo.

  • Com efeito, não é literatura para o grande público, mas para um público culto. Que o seja não a diminui em nada, porque ser obra poética para o grande público ou para um público mais culto não é nota de bondade: assim,as Bucólicas de Virgílio são para um público mais amplo, enquanto sua Eneida é para um público mais restrito, sem que nada disso diminua o valor de ambas as obras. — Mas a saga do Padre Brown alcança seu público de maneira tão perfeita como faz a Eneida de Virgílio ou Henrique V de Shakespeare ou as Sinfonias de Anton Brunkner.
  • Simboliza perfeitamente, na personagem do Padre Brown e suas peripécias detetivescas, a sagacidade e a prudência (prudentia, phrónesis) cristãs, com o que rompe certo esquema aristotélico. Com efeito, para Aristóteles (cf. sua Poética) a tragédia, pelo heroico, representava ações de homens superiores a nós, enquanto a comédia, pelo risível ou ridículo, representava ações de homens inferiores a nós. Mas tal distinção era própria do paganismo: após Cristo, porque o nome cirstão é loucura para o mundo e motivo de escárnio para os ímpios, é perfeitamente possível mostrar uma personagem risível mas, ao mesmo tempo, superior a nós. É o que se dá com o Padre Brown, esse padreco feio, de aparência desagradável (até por sua batina e seu guarda-chuva surrados) e de gestos cômicos, e que, todavia,tem as virtudes da santidade, incluída a humildade. Trata-se da comédia cristã, que se dá porém no quadro dramático da salvação ou da condenação eternas; e nela Brown jamais deixa de ser, justamente, sacerdote, razão por que nunca descobre o criminoso sem a intenção de que a confissão lhe alcance o perdão dos crimes.[11]
  • Como se verá por este A Inocência do Padre Brown — reunião de doze contos admiráveis e impecáveis, entre os quais, todavia,ouso destacar especialmente “A Cruz Azul” e “O Martelo de Deus” —, é na saga do Padre Brown que Chesterton atinge o cume da beleza artística. Tudo aqui concorre para tal: uso brilhante das aliterações e do ritmo permitidos pela língua inglesa; uma riqueza vocabular que vai de par com uma grande profundidade, digamos, retórica (em o “Martelo de Deus”, por exemplo, diz o Padre Brown: “A humildade é a mãe dos gigantes”); um humor (finíssimo) e um drama cuja mescla tem parentesco, por um lado,com o Cervantes de D. Quixote[12] e, por outro lado, com o Dickens de tantas obras; metáforas usadas na medida certa e no momento certo; tudo sempre contra um pano de fundo cristão ao mesmo tempo leve e grave, como convinha com a ideia que Chesterton queria simbolizar por esta saga.

        O que o leitor tem agora em mãos — A Inocência do Padre Brown, primeiro livro da saga — é um tesouro. É obra de arte pura e simplesmente perfeita, e contribui grandemente para sua formação global. E, se nos pareceu que, no meio da grande confusão hodierna quanto às Artes do Belo, deveríamos dar todas as precisões filosóficas que demos neste prólogo, não o fizemos senão para melhor limpar de escolhos a leitura destes doze contos e permitir ao leitor um deleite, digamos, consciente. É que, assim como não se devem introduzir entre os fiéis católicos questões teológicas árduas senão quando alguma heresia os vem perturbar, assim também hoje, quando a revolução quer fazer passar por arte o que não passa de abortivo de arte com finalidade iníqua, temos o dever de introduzir entre os que desfrutam das Artes do Belo conhecimentos que as fundamentem filosoficamente.


[1] Poética usa-se aqui, portanto, como sinônimo de Artes do Belo.

[2] Haveria que considerar ainda a Sofística, que se ordena a evitar as falácias.

[3] Do mesmo que são as partes potenciais da alma humana sua parte vegetativa e sua parte sensitiva. Com efeito, assim como a parte vegetativa é alma humana e a sensitiva também é, mas em sentido reduzido (e gradativo), porque alma humana se diz mais propriamente da parte intelectiva, assim também a Poética, a Retórica e a Dialética são Lógica, mas de maneira reduzida (e gradativa), porque Lógica se diz mais propriamente da arte que permite ao ato da razão alcançar a ciência.

[4] No livro Das Artes do Belo, de Carlos Nougué, publicado pela Edições Santo Tomás.

[5] O caso da Arquitetura é mais complexo: é arte em parte servil, em parte liberal (todas as demais Artes do Belo são puramente, porque tão somente significativas). Deixe-se seu estudo para o referido livro.

[6] Pouco mais ou menos o que, em Feeling and Form: Theory of Art, de 1953, a filósofa neokantiana Susanne Langer chama ideia orgânica.

[7] Ter decoro (< lat. decorum, i), como usado entre os escolásticos para o poético, significa precisamente ter o conjunto das notas do belo,como já punha Aristóteles, “consiste na medida e ordem” (Poética, cap. VII). Cf. também sua Metafísica (M 1078 a 36): “As espécies principais do belo são a ordem, a simetria e o determinado”. Entre os Doutores cristãos, e muito especialmente em Santo Agostinho e em Santo Tomás de Aquino, aprofundar-se-ia muito o estudo do belo. Cf. ainda nossa Das Artes do Belo, em que, contra vários tomistas, se mostra que o belo é um dos transcendentais.

[8] Como diz em seu referido livro a filósofa Susanne Langer (neokantiana não destituída de acertos, ainda que no meio de uma doutrina falha), os católicos não deixam de ter sua parcela de culpa quanto à feiura atual do mundo, porque, com efeito, no século XX deixaram entrar o feio em seu templos. Pois bem, um filme que apresente adequadamente a vida de um santo ou a de Cristo e que, todavia, não cumpra os cânones da beleza artística,esse nem sequer, insista-se, pode dizer-se arte do belo, e ainda acaba por fazer com que a juventude sensível à beleza tenda a filmes anticristãos mas artisticamente conseguidos (como tantos de Bergman ou de Antonini, ainda que aqui, como se verá, a “beleza” esteja para o efetivamente belo assim como o ouropel está para o ouro).

[9] Assinala-se, contudo, que o fim último não só das Artes do Belo mas de todas as artes só é secundum quid, porque, com efeito, sempre será de algum modo meio com respeito ao fim último simpliciter do homem, Deus.

[10] A título de exemplificação: os quadros de Picasso não são arte de modo algum, porque não são conseguidos sequer quanto a seu duplo objeto — são feios, enquanto neles se opera, como diria o historiador da filosofia Giovanni Reale, uma diluição das formas. Um quadro, no entanto, que mantenha o decoro artístico mas retrate algo obsceno, não busca o fim último das Artes do Belo, senão que é moralmente condenável. Para detido aprofundamento disto, cf. ainda nosso Das Artes do Belo.

[11] Vê-se por aí a superioridade global da saga do Padre Brown sobre o conjunto de livros de Agatha Christie com sua personagem Hercule Poirot ou com sua personagem Miss Marple. Estes são os mais das vezes exponenciais: é o caso, por exemplo,de Nemesis (com Miss Marple) ou de Hallowen’en Party (com Hercule Poirot), impecáveis moral ou religiosamente (além de tecnicamente). Mas sem sempre o são: assim, por exemplo,no final de The Murder of Roger Ackroyd, Hercule Poirot sugere ao criminoso o suicídio, que se cometerá de fato. Péssimo final para uma das tramas mais conseguidas de Christie.

[12] Essa obra tão mal compreendida até por certos católicos, que a criticam por considerar que encerra uma crítica à cavalaria medieval. Não: encerra uma crítica ironicamente devastadora aos absurdos romances de cavalaria medievais. É o primeiro dos romances em prosa modernos, mas jamais foi superado por nenhum outro.

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