O fanatismo moderno, por G. K. Chesterton


G. K.’s Weekly, 19 de dezembro de 1931

        Não avançaremos nem um só centímetro no progresso prático real do século XX até que eliminemos um pedaço de absurdo peculiar do século XIX. Refiro-me a algo que se autodenominava por nomes como tolerância, liberdade religiosa ou igualdade, e que foi luminosamente traído na asneira verbal sobre as pessoas que ‘abrigavam todos os tipos de doenças e não respeitavam a religião’. Não quero dizer que precisamos perder toda a nossa simpatia por outra religião, mas quero, sim, dizer que precisamos reconhecer que outra religião possuirá outra moralidade e que, na medida em que houver uma divisão de moralidade, haverá alguma divisão da nossa simpatia.

Os vitorianos falavam como se a religião fosse não apenas um assunto privado, mas uma piada de família; um acidente pessoal que não poderia ter nenhum efeito sobre a ação pública. Eles disseram, no espírito de seu líder Macaulay[1], que não fazia diferença para um homem, enquanto cidadão, se ele era calvinista ou ateu; o que é como dizer que não faz diferença para o homem, como marido, se ele é muçulmano ou mórmon. Isso não significa que um homem monogâmico não possa respeitar um muçulmano ou um mórmon[2]. Mas um monogâmico não o respeitará por ser polígamo. Pois a sua moral será diferente na medida em que sua fé for diferente; e na medida em que sua moral for diferente, ele será imoral. É o único sentido possível a ser dado às palavras humanas. Esse preconceito vitoriano bloqueia o caminho em um dos empreendimentos mais íngremes e difíceis do momento presente: a resolução do enigma da Índia.

        Recentemente, um muçulmano indiano fez um pronunciamento notável que traz à tona o ponto da maneira mais nítida e clara. Mas o curioso é que ele começou afirmando a visão vitoriana e terminou contradizendo-a categoricamente. Utilizando aquela forma costumeira das palavras que foram herdadas de todos os debates do século XIX sobre a independência nacional ou a liberdade religiosa; ele começou dizendo que um governo muçulmano consideraria todas as religiões iguais e que garantiria a liberdade religiosa para todos, e assim por diante, segundo a velha fórmula do iluminismo que nós conhecemos tão bem. Em seguida, ele proferiu uma defesa muito espirituosa e amplamente justificada do Islã, refutando a calúnia de que negam que as mulheres tenham almas, insistindo que sua religião exige a crença na dignidade natural e igualdade dos homens. Muito generosamente entusiasmado com a tarefa de glorificar esse espírito igualitário de seu credo, ele finalmente irrompeu em uma espécie de grito de indignação, dizendo que a própria ideia da existência de um pária ou de um homem inigualável era islamicamente revoltante, horrível, blasfema e intolerável. Eu concordo sinceramente com ele; porém, ele não conseguiu concordar completamente consigo mesmo.

É bastante esquisito dizer, numa só tacada, que se tolera todas as religiões, e que uma religião com párias é intolerável. Está aí, pois, em um caso claro e compacto, toda a impossibilidade do preconceito vitoriano que foi chamado de tolerância. Certamente havia, e presumivelmente há, uma religião brâmane grande e profundamente antiga da qual os párias fizeram parte; e é moralmente impossível para um muçulmano pensar que eles não importam, ou que a religião que os criou é tão boa quanto a dele. É puro senso comum; e o Islã pelo menos entende o bom senso. É por considerar todos os homens como iguais que o muçulmano não poderá considerar todos os credos como iguais. É porque não poderá excluirá o pária que deverá excluir o brâmane. Não é lógico responder que pode haver alguns brâmanes que se tornaram menos bramânicos. A questão é um problema inerente, e surgirá onde quer que os homens tenham religiões diferentes, sejam elas religiões antigas ou novas. Mesmo que os hindus se tornassem mais humanos, segundo o sentido daquele muçulmano, ele naturalmente preferiria o que sempre foi humano conforme seu sentido. Pedir-lhe que tenha um outro sentido de humanidade é pedir-lhe para que tenha uma outra religião; e assim, você estará se recusando a tolerar a religião dele.

O homem não pode fazer declarações sociais abrangentes sobre os direitos e deveres da humanidade e depois dizer que aceitará igualmente todas as declarações que contradizem essas declarações. É possível que um homem simpatize com bastante do que está em outro credo; mas apenas porque ele concorda com muito do outro credo. Pois não se simpatiza verdadeiramente quando não se concorda plenamente.

A verdade é que o que os vitorianos chamavam de tolerância universal era resultado da sua insularidade. Eles não tinham experiência prática de nada além de um bando de seitas protestantes, que realmente eram tão parecidas que teria sido pedante procurar por suas diferenças. Como não havia muita diferença prática entre um metodista primitivo e um metodista calvinista, eles imaginaram que não havia muita diferença prática entre um budista e um bandido. Foi por serem estreitas que tais diferenças puderam ser alargadas. Todavia, uma visão mais ampla do mundo exigirá algo que pode muito bem ser chamado de maior estreiteza de visão. Ela nos revelará a realidade das divisões profundas, como abismos que atingem até mesmo as raízes do mundo; entre essas quatro ou cinco filosofias fundamentais da vida, que tão amplamente cobrem a terra na forma das quatro ou cinco grandes religiões.

Não há nada como a disputa de duas seitas, conforme entendemos por seitas, com a diferença entre aquela poderosa e mística montanha em socalcos[3] das castas da Índia, e aquela nua mas majestosa camada muçulmana, que é como o seu berço nas areias planas e vermelhas da Arábia. Felizmente, um cristão em sentido pleno pode concordar em muitos pontos com qualquer uma delas – ou com ambas; mas ele não pode esperar que elas concordem uma com a outra. De todos os preconceitos daquele mero Sahib[4] britânico, seu preconceito mais estúpido é o de sua liberalidade. Porém, no novo e oscilante mundo moderno, o Sahib deve abandonar este preconceito ou morrer; pois a compreensão deste ponto é a compreensão total do caso da Espanha, da disputa na Itália, do futuro da Irlanda e, acima de tudo, do enigma da Índia.

O homem será como um cego em plena luz do dia caso não abra sua mente para algo melhor do que a mente aberta. Ele deve ampliar sua visão até que ela se adeque à tremenda verdade de que os credos são coisas muito grandes, e não muito pequenas, para serem vistas.

Tradução por João Medeiros.


[1] Thomas Babington Macaulay (1800-1859), 1º Barão de Macaulay, foi um poeta, historiador e político britânico. Lorde Macaulay serviu como Secretário para a Guerra e como Tesoureiro Geral do gabinete ministerial britânico.

[2] A Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, cujos membros são conhecidos mais popularmente por mórmons, ensinava e permitia a prática do “casamento plural”, como chamavam a poligamia, desde seu fundador Joseph Smith (1805-1844), possuindo ele mesmo mais de quarenta esposas (com a matéria aberta entre os historiadores para maiores acréscimos à lista). Após mais de 60 anos em disputas, e até mesmo guerras, com o governo americano, a presidência da Igreja Mórmon proibiu formalmente a contração de novos casamentos polígamos em 1904; entretanto, aqueles que já tinham vínculo “plural” permaneceram vinculados. Na prática, o “casamento plural” e a poligamia mórmon informal (ou extraoficial) só vieram a findar de facto por volta de 1950.

[3] Pequenas porções de terra em encostas que são separadas umas das outras, cortadas em formato similar ao de degraus.

[4] Sahib ou saheb é um título arábico que significa “companheiro”. Na Índia Britânica, era um título de honra conferido majoritariamente a muçulmanos, mas também a parses, iranianos e judeus súditos do Raj britânico, pelo Vice-rei e Governador Geral da Índia.

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